O avô de
Desdêmona tem olhos azuis, o pai tem olhos verdes e a mãe tem um olho de cada
cor de onde nascem frases quando ela nada diz. Permanece muda para todo o
sempre – quase nunca mia – mas seus olhos dizem tudo e expressam todas as suas
manias. Sim, toda a família felina tem manias que mudam ou não em acordo ou
desacordo com o mundo inútil ao redor. Tão inútil e fútil é quase tudo lá fora
– assim pensa o pai de Desdêmona. Quantas palavras ditas em vão e nunca se
entendem – assim pensa a mãe de Desdêmona. E quando se irritam falam coisas das
quais se arrependem logo em seguida, não conseguem perceber os muitos ângulos
de cada ponto ou vírgula em uma única frase – a mãe complementa seu raciocínio
para si mesma. Cristina, a namorada de Bastet, fez aniversário em outubro mas
este ano a comemoração foi mais reservada, ao contrário do ano passado quando
fizeram uma festa para muitas convidadas. Em outubro do ano passado convidaram
todas as amigas, além de Éluard e Sócrates. E Desdêmona é uma das amigas.
Sócrates já a conhece. Os felinos e felinas já se conhecem todos através de
pensamentos ocultos e sigilosos ou miados ou olhares intensamente expressivos
(dos mais distantes aos mais próximos). E mesmo assim a espécie felina se
estranha ou se esquiva de vez em quando. Gostam de ser donos do próprio espaço
e em geral detestam intrusões ou não fazem amizade tão rapidamente com os novos
inquilinos da casa. Quando humanos trazem mais um novo felino para conviver no
mesmo espaço podem ocorrer alguns distúrbios – passageiros ou não – porque
gatos são territoriais. Alguns mais sociáveis, outros bem menos. Sócrates faz o
tipo anti-social. Sai pouco e não anda sozinho pela rua – prefere ser
transportado pelas suas duas donas em sua casinha de transporte – mas tem lá
suas conhecidas e amigas também. E além disso, seu suave amor platônico – mas
deixa para lá. As fantasias suavemente correspondidas através de miados. Hoje
Desdêmona e Pamina visitaram Sócrates, que estava lendo o último livro do Neil
Gaiman após saborear a ração da marca Farmina. Suas donas trouxeram esta ração
há duas semanas porque adoram mimá-lo. Ele adorou. É véspera de Natal e
Sócrates já quase destruiu a embalagem do panetone italiano que suas donas
trouxeram para casa – elas ganharam de presente porque estão estudando italiano
com Pamina que é um pouco italiana (a gata de tripla personalidade às vezes tem
crises de identidade e acha que é inglesa mas é italiana – melhor nunca
contrariar). Sócrates aguarda a tranquilidade zen (os sapos a conhecem bem) que
os livros encomendados e o aprimoramento dos mimos que ele recebe lhe trarão a
cada novo ano. O amor inesgotável que se renova diariamente – tão sonhado e
quase impossível na sociedade humana – é merecido e digno da família felina. E
de todas as espécies amistosas que convivem pacificamente com as insanidades
humanas. Conviver com humanos é difícil, todos nós sabemos, mas quando eles se
esforçam ou pelo menos tentam fazer o melhor... nós, felinos ou felinas,
podemos aturá-los e até amá-los (quem sabe?) e tentar lhes ensinar o que
sabemos melhor que todos eles quando são dignos de confiança e afeto... Ah, a
espécie humana...
;-)
Liz
Christine