sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Um conto de fadas




A fada lilás colhendo mirtilos na floresta mais fria do reino – as palavras se repetiam transtornantes durante o mergulho em intransigências salgadas... Lágrimas cíclicas e suspiros circulares envolvem o silêncio gestual da rainha Myrtha – mude o rumo da conversa.

Conversa interditada na beira do rio congelado – a gata farejou sombras. Sombras destituídas de racionalidade – sombras tão brutas quanto os movimentos pesados da coelha gorda e bêbada caindo das escadas que levam ao quarto mais cobiçado do castelo. Castelo de paredes transparentes e ouvidos apurados – proteja todos os acessos aos quartos.

Tranque qualquer janela aleatória – tranque vozes e sorrisos ou expressões faciais ou portas e entradas. Afastem-se das escadas. E as lágrimas da rainha Myrtha retornam compulsórias enquanto a incompreensão soletra rascunhos de músicas para voz e piano. Bela Adormecida nutre uma paixão platônica pela insuportável fada lilás. Tudo está errado nessas notas musicais – recomece.

Tudo está errado neste romance inacabado – reescreva ou jamais releia. Não releia, esqueça. Tire as roupas e tente mergulhar no rio congelado – caso seja impossível, patine no gelo. Nuvens se aproximando – o gato de botas farejou a gata farejando sombras. E a gata se escondeu embaixo da cama da rainha.

Recomece, reescreva, repense, fuja, fugir ou relembrar. Fugir ou permanecer. A permanência transitória e a independência eterna. Desejos independentes se entrelaçam na neve. Em casos de dupla personalidade, nem sempre as metades se comunicam. Metades inquietas do brinquedo de pelúcia. Tranquilidade infinita e desejos recompensados – satisfações inesquecíveis.

A coelha gorda e bêbada caiu das escadas e quebrou o cálice favorito da rainha Myrtha que a mandou embora então e encontrou a gata debaixo da cama. Ela parou de chorar e foi degustar os mirtilos ofertados pela fada lilás. A insuportável fada lilás fez perguntas indelicadas e foi embora sem ouvir as respostas. E o castelo iluminado e protegido com o cair da noite fechou as portas para visitantes por tempo indeterminado. Até que a lua se restabeleça de uma súbita depressão causada pela queda na qualidade de vida das estrelas. As estrelas estão em greve agora e a lua continua esperando uma solução.

Liz Christine

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Diferenças de espécie




A gata branca Bastet comprou macarons de morango e de amêndoas na Paradis. O cisne Audrey assistiu ao balé Giselle. O gato preto Éluard acendeu um cigarro em área proibida para fumantes. E o imprevisível gato ruivo chamado Sócrates telefonou para o celular de Bastet. Bastet não atendeu o celular porque estava tomando um banho apurado e longo enquanto o cisne Audrey preparava um drink de leite desnatado com catnip do outro lado do corredor. Audrey e Bastet são vizinhas. O ronronante e imprevisível Sócrates comprou uma rosa vermelha e outra rosa branca e tocou a campainha de Bastet. Em uma lagoa mais afastada deste bairro os patos e sapos esperavam a chegada da tranquilidade zen que os livros encomendados trariam com o cair da noite. Em um lugar ainda mais afastado – muito mais afastado – havia uma cachoeira muito entediada com o barulho excessivo dos visitantes arruaceiros que plantavam palavras desordenadas ao seu redor. E as palavras cresciam e brotavam e murchavam e se entrelaçavam e se confundiam e exalavam caos – sem pausas para introspecções. A gata siamesa Cristina – namorada da Bastet – estava sonhando com um poema sobre a cachoeira que ela havia visitado há três meses atrás enquanto Bastet continuava seu longo banho e a campainha tocava. Audrey foi espionar o apartamento vizinho e suspirou chateada com a solidão constante em que vivia confinada – sem visitas, sem saídas divertidas, sem festas, sem companhia, sem romance, sem nada. Audrey era muito rica mas não confiava em ninguém e não gostava de ninguém e, inclusive, achava também que ninguém gostava dela. Audrey só gostava de balés românticos, clássicos, tecnicamente perfeitos, com grandes bailarinas, as melhores damas do balé. E gostava também de cappuccino e comida japonesa – mas isso ela tinha em comum com sua vizinha Bastet e também Éluard e Sócrates (e nem desconfiava que tinha gostos em comum com a gatalhada das redondezas, ela se achava única e solitária). Talvez Audrey fosse uma gata que nasceu cisne, sabe-se lá o motivo – ela até se divertia com catnip. Bastet viu a ligação não atendida de Sócrates quando terminou o banho e retornou – ele atendeu e disse que estava na porta da casa dela. Ela pediu dois segundos e abriu a porta – Cristina continuava em seu sono pesado no quarto principal da casa de Bastet, sonhando agora que era um cisne negro fumando erva de gato. Éluard andava meio sem rumo procurando uma cafeteria onde encontrasse espresso com licor no cardápio mas não encontrou nenhuma em Copacabana – só havia cafés alcoólicos em uma cafeteria em Ipanema e ele não estava a fim de andar tanto nem queria gastar com táxi. Éluard não tinha carro e suava para pagar todas as contas mas era muito educado e culto e escrevia muito bem, além de fazer música eletrônica também. Éluard morava bem perto de Bastet mas seu prédio era quarto e sala – muito bem arrumado apesar do pouco espaço. Éluard resolveu ligar para umas amigas-gatas e elas contaram que era aniversário de Cristina e haveria uma festa na casa de Bastet. Éluard conhecia Cristina e Bastet meio vagamente, conhecia de vista e poucas palavras trocadas, mas resolveu chegar lá com as gatas amigas. Audrey continuava espionando tudo através da porta e resolveu preparar mais um drink de leite desnatado com catnip e assistir de novo ao trecho do balé em que Giselle chegava no reino das willis (ela adorava esta parte da música e da coreografia). Audrey acabou enchendo a cara de catnip – pobre Audrey, uma gata que nasceu cisne, separada de seus semelhantes por diferenças de espécie. Não tinha nada a ver com outros cisnes – que fazer? Cristina acordou quando todas as convidadas chegaram – eram muitas e muitas gatas, de gato só havia Sócrates e Éluard. Audrey, completamente bêbada de drink de catnip, tocou a campainha na casa de Bastet. Sócrates abriu a porta, ela entrou, Bastet a cumprimentou, as convidadas se apresentaram, ninguém se importou com as diferenças de espécie, e todos ouviram música até o dia amanhecer.

Liz Christine

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Como as plantas



 
O silêncio recobre a vaidade – silêncio profundo duplicado na xícara de café...

Imagens retornam ao início de tudo dentro dos sonhos repartidos – tudo ou nada ou quase ou esqueça... Um quase despertar que foge a todo instante – sonhos repartidos e quase esquecidos retornando aos princípios desleixados – deixe estar, não se incomode, abstrair, esconder, subtrair, duplicar, repartir, mais intensa (retornam com mais intensidade)...

Mais intensa a abstração – esconda. Amores correspondidos – fuja. Nunca permaneça – apenas as exceções. Desejar apenas as exceções para todo o sempre – as regras são excessivamente vaidosas (ou talvez vazias de pressentimentos)...

Permaneça em silêncio durante três quartos do tempo volúvel – amores correspondidos em sonhos repartidos na profunda absorção de pressentimentos. A doce concisão dos sonhos repartidos – não complique mais a problemática interpretação de imagens sorrateiras que transparecem a cada gole de café. Problemas passageiros – tudo passa ou quem sabe quase nada muda tão profundamente nos intervalos da televisão (ignore, como fazem as plantas).

As plantas ignorando todos os comerciais ou séries – as plantas interessadas no balé dos peixes e fadas. Os peixes sonhando com felinas amistosas que convivem pacificamente com borboletas e mariposas flutuando ao redor do aquário. Palavras flutuam – fadas se escondem às vezes. Palavras camufladas – permaneça em silêncio durante três quartos do tempo volúvel e repita o café e o beijo. Sim, de novo – ignore as defesas eternas, como fazem as plantas.

As plantas tão pacientes e tão ardentes – as plantas queimando incensos e saboreando trufas de café ou cereja (isoladas das multidões barulhentas). As plantas indo ao mercado para comprar espinafre e brócolis – plantas degustando temakis enquanto assistem filmes de Buñuel.

Plantas comprando areia de gato e ração – enquanto a fada mais indecisa do esconderijo chama sua gata Titânia para visitar as plantas... Sim, as fadas vivem às vezes em esconderijos – só às vezes (assim como fazem as plantas).

Liz Christine