quinta-feira, 2 de abril de 2009

Meio

Eu vou me matar lentamente. Eu morro diariamente mas morro com saúde. Exceto os cigarros, não há nada que eu faça de errado. E eu tenho uma teoria apesar de à princípio ser uma destruidora de teorias: é simples – quando se faz tudo certinho, direitinho, as coisas invariavelmente dão errado; e quando se faz tudo errado ou parcialmente errado e parcialmente duvidoso e bizarro mas com um toque suave de amor picante, aí dá tudo certo. As pessoas certinhas são um pé no saco e não têm alma: porque a alma é por princípio errante e o corpo é por princípio humano. Ou seja o corpo tem limites e necessidades que podem e devem ser superadas mas a carne é fraca em sua própria força. Afinal, o quê é a vida sem o amor e o sexo e a poesia e a arte e os sonhos e fantasias? E isso tudo pra alguns é fragilidade e pra outros é força. Então, resumindo: seguir a si mesmo é o melhor caminho. E fugir de si mesmo pode ser também a solução: a gente dá um tempo de nós mesmos e depois a gente volta a si, mas durante esse meio tempo fora de si nós podemos nos divertir bastante e até descobrir que somos mais do que pensávamos. Descobrir a si mesmo e adivinhar de vez em quando que não somos sempre iguais a nós mesmos e que podemos inclusive nos separar temporariamente de nós mesmos para experimentar novas possibilidades e esquecimentos e devaneios químicos ou físicos ou emocionais – para depois nos reencontrarmos com essência inalterada e eterna mas com personalidade e comportamento sujeitos a transformações e absorções. Absorvemos a outra – a outra parte, aquela que nos atrai, e descobrimos que esta parte já nos pertencia antes mesmo de a conhecermos. Um pouco daquela ali, um pedaço dessa aqui, um trecho de algum livro, a fantasia que alguém joga em cima da gente – sim, sempre há alguém pensando alguma coisa qualquer a nosso respeito, e podemos absorver isso ou não, podemos discordar firmemente ou simplesmente pensar: “é isso mesmo, e daí?”, ou: “nunca pensei nisso nem me vi dessa forma mas vou tentar porque eu sou tudo que eu ou tu quiser, sou tudo e nada e um pouco de cada...” Há pessoas incapazes de nos enxergar como somos, enquanto outras adivinham como nos sentimos por trás do que somos, e há também pessoas manipuladoras ou destruidoras que tentam (e podem até conseguir!) nos modelar de acordo com as necessidades delas. Eu prefiro estar errada, é a minha escolha, mas eu não vou obedecer quando me dizem que algo é certo – antes eu vou perguntar: mas isso é certo para mim?, é assim que eu quero agir? E se a resposta for “não”, olha, sinceramente, eu estou farta de implicâncias e regras e julgamentos e condenações. A vida é simples: se alguma opção não lhe agrada, procure outras. A não ser que tu esteja em uma prisão criada especialmente para ti por pessoas com muita boa vontade e a certeza de que estão certas e agindo da melhor forma possível – ou o pior: dependência financeira. Sim, o dinheiro pode ser uma forma de controle por parte de muitas partes.

“Did you realize no one can see inside your view,
Did you realize forwhy this sight belongs to you.”
Strangers, Portishead

Eu me mato diariamente e desapareço constantemente, tanto que às vezes nem me encontro pois estou em algum outro lugar que não é essa prisão chamada “sociedade” ou quem sabe “família” ou talvez “casa” mas também pode ser “o país onde moro” ou seja lá o que for. Eu não quero, eu me recuso e eu não vou de forma alguma. A minha casa sou eu, meu corpo, minha pele, mãos, boca, unhas, seios, etc, etc, etc – eu moro aqui, não no endereço tal número tal rua tal bairro tal. Eu sou a minha casa e o meu pensamento vagueia livremente, e em pensamento estou sempre onde quero e com quero. Eu sempre tenho companhias agradáveis e fantasias agradáveis com companhias agradáveis e eu desconheço a solidão e a abstinência sexual ou química ou sensorial. Tenho tudo que quero e meus sonhos muitas vezes se concretizam muito antes que amadureçam em meu pensamento, mas as fantasias mais confusas e um pouco destrutivas não se realizam porque inconscientemente eu sei o que deve e o que não deve acontecer comigo. E se algo ruim aconteceu comigo no passado, não tem problema, é algo que eu posso transformar à minha maneira e converter em algo esquecível ou superável ou até risível. Eu posso ser indiferente à qualquer desgraça e achar que desgraça nunca existiu nesse mundo – mesmo que eu me sinta angustiada quando qualquer um diz: “me dá um dinheiro, estou morrendo de fome, por favor, estou pedindo, não estou roubando...” A verdade é que a gente fica indiferente depois de muitas desgraças sucessivas ou alguns já nascem mesmo indiferentes ouvindo discussões inúteis já na barriga das mamães. Eu sofro e quero morrer, apesar de me alimentar bem há uns dois anos ou menos, mas eu estou aqui – não estou? Meio viva, meio morta, meio criança, meio gata, meio cansada, meio curiosa, meio chorona, meio indiferente, e com muita sede...

“Never found our way,
Regardless of what they say.”
Roads, Portishead

Liz Christine


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