quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Diário da irmã de Sócrates


O avô de Desdêmona tem olhos azuis, o pai tem olhos verdes e a mãe tem um olho de cada cor de onde nascem frases quando ela nada diz. Permanece muda para todo o sempre – quase nunca mia – mas seus olhos dizem tudo e expressam todas as suas manias. Sim, toda a família felina tem manias que mudam ou não em acordo ou desacordo com o mundo inútil ao redor. Tão inútil e fútil é quase tudo lá fora – assim pensa o pai de Desdêmona. Quantas palavras ditas em vão e nunca se entendem – assim pensa a mãe de Desdêmona. E quando se irritam falam coisas das quais se arrependem logo em seguida, não conseguem perceber os muitos ângulos de cada ponto ou vírgula em uma única frase – a mãe complementa seu raciocínio para si mesma. Cristina, a namorada de Bastet, fez aniversário em outubro mas este ano a comemoração foi mais reservada, ao contrário do ano passado quando fizeram uma festa para muitas convidadas. Em outubro do ano passado convidaram todas as amigas, além de Éluard e Sócrates. E Desdêmona é uma das amigas. Sócrates já a conhece. Os felinos e felinas já se conhecem todos através de pensamentos ocultos e sigilosos ou miados ou olhares intensamente expressivos (dos mais distantes aos mais próximos). E mesmo assim a espécie felina se estranha ou se esquiva de vez em quando. Gostam de ser donos do próprio espaço e em geral detestam intrusões ou não fazem amizade tão rapidamente com os novos inquilinos da casa. Quando humanos trazem mais um novo felino para conviver no mesmo espaço podem ocorrer alguns distúrbios – passageiros ou não – porque gatos são territoriais. Alguns mais sociáveis, outros bem menos. Sócrates faz o tipo anti-social. Sai pouco e não anda sozinho pela rua – prefere ser transportado pelas suas duas donas em sua casinha de transporte – mas tem lá suas conhecidas e amigas também. E além disso, seu suave amor platônico – mas deixa para lá. As fantasias suavemente correspondidas através de miados. Hoje Desdêmona e Pamina visitaram Sócrates, que estava lendo o último livro do Neil Gaiman após saborear a ração da marca Farmina. Suas donas trouxeram esta ração há duas semanas porque adoram mimá-lo. Ele adorou. É véspera de Natal e Sócrates já quase destruiu a embalagem do panetone italiano que suas donas trouxeram para casa – elas ganharam de presente porque estão estudando italiano com Pamina que é um pouco italiana (a gata de tripla personalidade às vezes tem crises de identidade e acha que é inglesa mas é italiana – melhor nunca contrariar). Sócrates aguarda a tranquilidade zen (os sapos a conhecem bem) que os livros encomendados e o aprimoramento dos mimos que ele recebe lhe trarão a cada novo ano. O amor inesgotável que se renova diariamente – tão sonhado e quase impossível na sociedade humana – é merecido e digno da família felina. E de todas as espécies amistosas que convivem pacificamente com as insanidades humanas. Conviver com humanos é difícil, todos nós sabemos, mas quando eles se esforçam ou pelo menos tentam fazer o melhor... nós, felinos ou felinas, podemos aturá-los e até amá-los (quem sabe?) e tentar lhes ensinar o que sabemos melhor que todos eles quando são dignos de confiança e afeto... Ah, a espécie humana...

;-)


Liz Christine

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Nebbioso


Às vezes uma tristeza súbita se enrosca em pensamentos ocultos e se espalha por todos os recantos onde ficam escondidas as chaves do paraíso perdido – ah, idealismo (a inocência mora no coração das corujas loucas e nos olhos felinos que costumam se esconder de intrusões ligeiras e superficiais ou desconfortáveis – tão desconfortáveis quanto falar em vão)... Abrir parênteses para sussurrar novamente – (falamos em vão, já notaste? Sim, falamos totalmente e completamente em vão, as múmias maldosas não processam informações e fabricam infernos – entre quatro paredes ou sob o luar, o inferno é aqui, o paraíso reencontrado após os exercícios de imaginação também é igualmente aqui neste mesmo mundo, e o limbo também fica neste mesmo espaço, todos os mundos se interligando e se interpondo e se anulando ou complementando ou distorcendo ou acrescentando mais e mais, mais conhecimento, menos compreensão mútua, a sociedade é um hospício ou prisão, estamos todos tão confusos e

Pausa. Recomece os exercícios e fuja do inferno – falamos em vão, já notaste? Quem se importa? Os humanos querem falar – quem se importa se há ou não compreensão neste planeta insano? O respeito ao próximo, a liberdade da escolha ou da recusa, as diferenças, o amor felinamente ronronante, os bichanos e os bichos todos – o amor a todas as espécies, igualmente sagradas, diferenciadas e atuantes. Ou isolacionistas ou orgulhosas ou afetuosas ou independentes ou amorosas – esconderijos. A natureza e todas as suas espécies, a humanidade e toda a sua poluição – ao menos tentar. Ao menos tentar consertar alguma ou qualquer coisa ou o que poderia ser possível dentro de todas as limitações de (...).

Ainda há tempo. Sempre há. Mas ninguém percebe. Ou algumas poucas notam mas que poderiam fazer? Algumas poucas corujas loucas. Pamina, a gata, não quer conversar agora. Está procurando as chaves que não estão em esconderijos mais óbvios que um silêncio quase contrariado. Adianta falar? Recomece os exercícios e imagine como poderia ser a convivência ideal entre Pamina, a gata com tripla personalidade, e o poema personificado dentro de um espelho enfeitiçado que a fada lilás roubou do sótão de uma bruxa quase múmia e quase quase. Quase inimiga da tranquilidade reencontrada na meditação antes do chá. O café nosso de cada dia e o chá dos dias todos inteiramente quase. Ella quase te alcança mas foge sorrateiramente. O caos das palavras e a liberdade reencontrada após o café nosso de cada dia e o chá dos dias todos. A tristeza súbita passa lentamente e repassa silêncios quase lúcidos. Os sonhos quase lúcidos de Flora. E Sócrates assiste balés com as babuskas novamente (...).

Um poema que tem rosto, um sonho que tem coração, um ideal que tem noções básicas de realismo, um espelho enfeitiçado roubado, as dificuldades do diálogo humano, a linguagem gestual que dispensa as palavras – e as chaves do paraíso finalmente reencontradas. Não há nada neste mundo melhor que a tranquilidade – sim, é verdade. A tranquilidade vale mil vezes mais que qualquer tipo de discussão. Os bichanos e os bichos todos se exercitam enquanto brincam – depois descansam tranquilamente. Filhotes felinos que jamais crescem. Palavras jamais pronunciadas. A não ser que pudessem ao menos ser compreendidas. Ouvidos atentos e silêncios sorrateiros. Reencontrar diariamente por alguns minutos ou horas – o tempo necessário. Ainda há tempo. Sempre há. Para qualquer tipo de utopia com noções básicas de realismo. (         )


Liz Christine