Amigos e
amigas que nascestes em maio:
Estas
letras e este autor aqui estão simplesmente para se integrarem na poesia dessa
circunstância e avivá-la em vós, se acaso vai murchando, como sugeri-la a todos
os outros seres, infortunados seres que nasceram em março, em julho, em
novembro. Porque vosso nascimento é pura canção, mesmo que sejais economistas,
deputados, capitães-de-corveta. Uma predestinação lírica presidiu a vosso
berço, e que tenhais enveredado por um caminho prático, onde a palavra maio
significa apenas assembléia-geral de uma companhia de produtos químicos, não
tem a menor importância: estais marcados de maio, carregais convosco, no canal
de vossas veias, invisível, incapturável, imperturbável e aliciante, o
princípio de maio. E ele jamais permitirá que vos tomem por um simples homem de
outubro, e na vossa miúda e radiante biografia há de sempre insinuar a nota
íntima, cristalina e melodiosa, de um pequeno acidente feliz, individualizadora
do destino humano.
Maio sois e
maio continuareis. O uso grosseiro de vossa vida não lhe corromperá de todo a
limpidez original; se um dia matardes, se vos venderdes à política, se vos
tornardes a vergonha de vossa pátria, ainda assim o lado maio de vossa
fisionomia continuará indelével, e fará com que se murmure: "Coitado!
apesar de tudo, nasceu em maio." E tu nasceste em maio – assinala o poeta
ao fim do canto em que celebra o mês especial, assim como aquele que se
inclinou diante do recém-nascido marcado pelos deuses, afiançando: Tu Marcellus
eris. Por quê?
Decerto não
sabeis bem por quê, mas sentimentalmente o apreendeis, e, homem ou mulher, os
nascidos em maio caminham ao peso de uma carga suave – uma andorinha não
pesaria menos - , que é o pressentimento, a intuição de participarem de um
segredo atmosférico, pois ele está gravado, em hieróglifos, no ar, e no vento
perpassa. "Nós os de maio..." – tendes o direito de sublimar, em face
da mesquinha situação de nós outros, os do resto do ano (exceto os da segunda
quinzena de dezembro, é claro!). E aqui ouso afirmar que vosso segredo é
meio-pagão, meio–religioso, de tal modo as coisas se baralham no mundo, e os
mistérios se prolongam e se entrelaçam. Porque há em maio dois meses: o mês de
Maria, e o mês de maio propriamente dito. Se sois cristãos romanos, maio bate
sinos na vossa infância ou na vossa madureza, e aspirais o incenso, entoais o
Janua Coeli, Turris Eburnea e não sei que mais invocações encantatórias, e vos
ajoelhais, e assistis à coroação da Virgem, se não a coroais vós mesmos, com a
mão antiga e branca que nasce de súbito na ponta de vossos braços adultos. Mas,
se não sois cristãos, não faz mal, maio ainda é festa, e festa foi sempre,
desde o velho mundo latino, que o consagrava a Apolo e lhe punha à cabeça uma
cesta de flores. Apolo, flores, fim do cruel inverno, irradiação da primavera, procissão
de palmas verdes, enfeites de casa com verde, tudo verde, verde, verde, e esse
ramo florido e enguirlandado que na Idade Média o amigo ia plantar à porta da
casa do amigo, a 1º de maio, e que se chamava maio, e que sugere ao meu austero
dicionarista Caldas Aulette esta expressão para definir um sujeito todo
enfeitado: "Parecia mesmo um maio". Como sugeriu a Camões, em momento
de ternura, o doce verso:
Só para meu
amor é sempre MAYO.
De resto, o
segundo maio, o mariano – em que não desfaço, tanto lhe devo eu próprio em
evocações e sensações artísticas depositadas no fundo de meu pobre materialismo
-, só nasceu mesmo no século XVIII, quando o padre jesuíta Lalomia teve a idéia
de transformar paganismo em cristianismo (muitos de nossos santos, Deus me
perdoe, guardam a sombra de divindades ou entidades pagãs, a julgarmos pelo
caso de São Sátiro, contado por Anatole France), e dedicou o mês a Nossa
Senhora, compondo em 1785 Il Mese de Maggio consacrato alle gloria della gran
Madre de Dio. Maio cristianizou-se, porém muito de sua magia continua ligada ao
reverdecimento espontâneo das árvores, ao desatar das águas presas durante 89
dias e 2 horas, na deliciosa falsa contagem dos meteorologistas, às expansões
da terra que penetrou em um novo ciclo e aconselha bichos, gentes e plantas a
que amem, amem desbragadamente. Não estou delirando, ó criaturas de maio. Tudo
isto se passa em outro hemisfério, mas também por estas bandas austrais maio é
primavera, senão na natureza, pelo menos em estado de espírito, em concordância
íntima de valores, em consubstanciações vaporosas de que cada um de nós adquire
a fórmula, a qual, ó eleitos, nem sequer precisais aprender, pois a recebestes
com o primeiro vagido. Concordo, sem repugnância, em que o nosso mês de maio
cai no fim do outono. Custa-me pouco aceitar o outono brasileiro, se o vejo,
como aqui no Rio, de um azul diáfano, arrepiado por um friozinho que enxuga e
perfuma o suor das coisas, tristes coisas urbanas usadas pelo sol do trópico, e
por ele restituídas à sua prístina pureza. Não há tempo mais leve, caricioso,
humano e coloquial do que este maio carioca, revestido ou não de prestígio
mundano, porque sorri tanto aos freqüentadores de concertos como aos homens
sentados em bancos de jardim público, ao passageiro do bonde Freguesia, ao
remador, à datilógrafa do Serviço de Proteção aos Índios, ao médico do
Pronto-Socorro, ao Senador Melo Viana, aos meninos da Escola Cócio Barcelos,
aos pedreiros construindo edifícios, à massa palpitante de uma cidade feita de
subúrbios que transbordam até à Avenida Rio Branco: maio dá para todos,
reparte-se amorosamente entre homens sofredores e homens de boas roupas, como
uma conciliação meteorológica, um arco-íris pairando sobre as contradições da
cidade. Se bem que, de coração, ele se volte mais, num enternecimento cúmplice,
para aquela parte do povo que sua no rude batente, e a que é dedicado, desde
1890, o seu dia inaugural.
Mês de
Nossa Senhora coroada de rosas, e de operários que morrem pela causa de oito
horas de trabalho no mundo, frio mês das montanhas mineiras, nostalgia de
namoradas e rezas, cartuchos de amêndoas que a irmã trazia da coroação na
Matriz, que era um grande navio iluminado, conversas no adro, à espera do
leilão de prendas, vagos estremecimentos de poesia, formas infantis de um sonho
que mais tarde seria inquietação e carinho franjado de ironia – tudo isso vai
brotando desta caneta comercial com que escrevo, e baila no ar e me penetra –
tudo isso é vosso, é a própria substância de que se tece vossa vida, ó nascidos
e bem-aventurados em maio! Para quem esta carta é colocada na mala irreal de
uma posta feérica.
CARTA AOS NASCIDOS EM MAIO
Carlos Drummond de Andrade
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