sábado, 4 de maio de 2013

O balé das sereias



“Havia sido uma mudança melancólica e Emma não podia fazer nada a não ser suspirar e desejar coisas impossíveis, até que o pai percebesse e ela se visse obrigada a parecer alegre.” (Emma, Jane Austen)

O pai do polvo é também avô do Cupido (também conhecido como Eros). Cupido é um gato com lindos olhos claros que mudam de cor de acordo com a iluminação. As sereias fugitivas desprezam solenemente o teatro de marionetes chamado Bar dos Desapegados. Mas o Bar dos Desapegados anda lotado e em evidência na mídia e em aulas de psicologia de botequim. Até um filme de arte já foi feito sobre o Bar dos Desapegados (e também três documentários). Além dos livros de auto-ajuda e best-sellers autografados por celebridades adeptas do poético movimento dos Desapegados. Poesia de botequim ou de barco improvisado. A tempestade alaga as ruas e o lixo não está sendo recolhido. As casas infestadas de mosquitos e os tetos desabando. E as tristezas descabidas – todas justificáveis. Todas perdoáveis. Todas fáceis de serem esquecidas. Esqueça sempre. Esqueça até as melhores lembranças e as difíceis ou improváveis saudades. Esqueça tudo, não há sentido – não é uma questão de procurar. Não procure, diga que não existe mais. Não crie (um ou muitos sentidos), diga que se acabaram todos. Não existe mais a interpretação de silêncios. Não há palavras, há nuvens. São nuvens carregadas – ou andando nas nuvens ou sonhando no Theatro Municipal. Em qualquer lugar é igual – as sereias fugitivas. Fogem em citações de Gertrude Stein e em polidas conversações de livros escritos por Jane Austen. Fogem do sol também. Como as meninas de mãos dadas de outro texto. Ou de qualquer filme sonhado que jamais será filmado. Nenhuma platéia verá. Ninguém fará download. As babuskas lésbicas estão sonhando acordadas. Acordadas com a compreensão mútua e sonhando com sapatilhas. Suspirar e desejar. Coisas tão impossíveis quanto realizar sonhos. Esconda-se. Realize sonhos em esconderijos. Concretizando utopias e andando nas nuvens. Cupido é um gato charmoso e culto – além dos lindos olhos claros que mudam de cor de acordo com a iluminação. E o polvo tem um bom coração meio inclinado a um infeliz abuso das palavras cafonas – mas é um bom polvo. E assim as sereias descansam na banheira de hidromassagem – elas merecem. Merecem ficar longe do teatro de marionetes. A liberdade tranquilizadora reina nas nuvens do papel de parede no quarto da menina de cinco anos. Cinco anos de suspiros. E vinte e dois anos de músicas apaixonantes. E quinze anos de poesia surrealista. E a eternidade no tapete. A gata adulta mia como filhote ouvindo Ella Fitzgerald – e os queijos são degustados na mais completa satisfação das aspirações felinamente românticas.

“Era alguém a quem Emma podia revelar tudo que pensava e que lhe dedicava um afeto tão profundo que jamais terminaria.” (Emma, Jane Austen)

O tempo é fútil, o tempo é volúvel, o tempo é eterno, o tempo é profundo, o tempo passa, o tempo fica, o tempo restabelece, o tempo muda, o tempo transcorre lentamente. O tempo absorve rapidamente. E a tempestade prevalece junto com as nevascas do lado oposto ou seguinte ao sonho essencial das sereias tirando fotos dentro do banheiro do Theatro Municipal.

Liz Christine

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Carta aos nascidos em maio – Carlos Drummond de Andrade



Amigos e amigas que nascestes em maio:

Estas letras e este autor aqui estão simplesmente para se integrarem na poesia dessa circunstância e avivá-la em vós, se acaso vai murchando, como sugeri-la a todos os outros seres, infortunados seres que nasceram em março, em julho, em novembro. Porque vosso nascimento é pura canção, mesmo que sejais economistas, deputados, capitães-de-corveta. Uma predestinação lírica presidiu a vosso berço, e que tenhais enveredado por um caminho prático, onde a palavra maio significa apenas assembléia-geral de uma companhia de produtos químicos, não tem a menor importância: estais marcados de maio, carregais convosco, no canal de vossas veias, invisível, incapturável, imperturbável e aliciante, o princípio de maio. E ele jamais permitirá que vos tomem por um simples homem de outubro, e na vossa miúda e radiante biografia há de sempre insinuar a nota íntima, cristalina e melodiosa, de um pequeno acidente feliz, individualizadora do destino humano.

Maio sois e maio continuareis. O uso grosseiro de vossa vida não lhe corromperá de todo a limpidez original; se um dia matardes, se vos venderdes à política, se vos tornardes a vergonha de vossa pátria, ainda assim o lado maio de vossa fisionomia continuará indelével, e fará com que se murmure: "Coitado! apesar de tudo, nasceu em maio." E tu nasceste em maio – assinala o poeta ao fim do canto em que celebra o mês especial, assim como aquele que se inclinou diante do recém-nascido marcado pelos deuses, afiançando: Tu Marcellus eris. Por quê?

Decerto não sabeis bem por quê, mas sentimentalmente o apreendeis, e, homem ou mulher, os nascidos em maio caminham ao peso de uma carga suave – uma andorinha não pesaria menos - , que é o pressentimento, a intuição de participarem de um segredo atmosférico, pois ele está gravado, em hieróglifos, no ar, e no vento perpassa. "Nós os de maio..." – tendes o direito de sublimar, em face da mesquinha situação de nós outros, os do resto do ano (exceto os da segunda quinzena de dezembro, é claro!). E aqui ouso afirmar que vosso segredo é meio-pagão, meio–religioso, de tal modo as coisas se baralham no mundo, e os mistérios se prolongam e se entrelaçam. Porque há em maio dois meses: o mês de Maria, e o mês de maio propriamente dito. Se sois cristãos romanos, maio bate sinos na vossa infância ou na vossa madureza, e aspirais o incenso, entoais o Janua Coeli, Turris Eburnea e não sei que mais invocações encantatórias, e vos ajoelhais, e assistis à coroação da Virgem, se não a coroais vós mesmos, com a mão antiga e branca que nasce de súbito na ponta de vossos braços adultos. Mas, se não sois cristãos, não faz mal, maio ainda é festa, e festa foi sempre, desde o velho mundo latino, que o consagrava a Apolo e lhe punha à cabeça uma cesta de flores. Apolo, flores, fim do cruel inverno, irradiação da primavera, procissão de palmas verdes, enfeites de casa com verde, tudo verde, verde, verde, e esse ramo florido e enguirlandado que na Idade Média o amigo ia plantar à porta da casa do amigo, a 1º de maio, e que se chamava maio, e que sugere ao meu austero dicionarista Caldas Aulette esta expressão para definir um sujeito todo enfeitado: "Parecia mesmo um maio". Como sugeriu a Camões, em momento de ternura, o doce verso:

Só para meu amor é sempre MAYO.

De resto, o segundo maio, o mariano – em que não desfaço, tanto lhe devo eu próprio em evocações e sensações artísticas depositadas no fundo de meu pobre materialismo -, só nasceu mesmo no século XVIII, quando o padre jesuíta Lalomia teve a idéia de transformar paganismo em cristianismo (muitos de nossos santos, Deus me perdoe, guardam a sombra de divindades ou entidades pagãs, a julgarmos pelo caso de São Sátiro, contado por Anatole France), e dedicou o mês a Nossa Senhora, compondo em 1785 Il Mese de Maggio consacrato alle gloria della gran Madre de Dio. Maio cristianizou-se, porém muito de sua magia continua ligada ao reverdecimento espontâneo das árvores, ao desatar das águas presas durante 89 dias e 2 horas, na deliciosa falsa contagem dos meteorologistas, às expansões da terra que penetrou em um novo ciclo e aconselha bichos, gentes e plantas a que amem, amem desbragadamente. Não estou delirando, ó criaturas de maio. Tudo isto se passa em outro hemisfério, mas também por estas bandas austrais maio é primavera, senão na natureza, pelo menos em estado de espírito, em concordância íntima de valores, em consubstanciações vaporosas de que cada um de nós adquire a fórmula, a qual, ó eleitos, nem sequer precisais aprender, pois a recebestes com o primeiro vagido. Concordo, sem repugnância, em que o nosso mês de maio cai no fim do outono. Custa-me pouco aceitar o outono brasileiro, se o vejo, como aqui no Rio, de um azul diáfano, arrepiado por um friozinho que enxuga e perfuma o suor das coisas, tristes coisas urbanas usadas pelo sol do trópico, e por ele restituídas à sua prístina pureza. Não há tempo mais leve, caricioso, humano e coloquial do que este maio carioca, revestido ou não de prestígio mundano, porque sorri tanto aos freqüentadores de concertos como aos homens sentados em bancos de jardim público, ao passageiro do bonde Freguesia, ao remador, à datilógrafa do Serviço de Proteção aos Índios, ao médico do Pronto-Socorro, ao Senador Melo Viana, aos meninos da Escola Cócio Barcelos, aos pedreiros construindo edifícios, à massa palpitante de uma cidade feita de subúrbios que transbordam até à Avenida Rio Branco: maio dá para todos, reparte-se amorosamente entre homens sofredores e homens de boas roupas, como uma conciliação meteorológica, um arco-íris pairando sobre as contradições da cidade. Se bem que, de coração, ele se volte mais, num enternecimento cúmplice, para aquela parte do povo que sua no rude batente, e a que é dedicado, desde 1890, o seu dia inaugural.

Mês de Nossa Senhora coroada de rosas, e de operários que morrem pela causa de oito horas de trabalho no mundo, frio mês das montanhas mineiras, nostalgia de namoradas e rezas, cartuchos de amêndoas que a irmã trazia da coroação na Matriz, que era um grande navio iluminado, conversas no adro, à espera do leilão de prendas, vagos estremecimentos de poesia, formas infantis de um sonho que mais tarde seria inquietação e carinho franjado de ironia – tudo isso vai brotando desta caneta comercial com que escrevo, e baila no ar e me penetra – tudo isso é vosso, é a própria substância de que se tece vossa vida, ó nascidos e bem-aventurados em maio! Para quem esta carta é colocada na mala irreal de uma posta feérica.


CARTA AOS NASCIDOS EM MAIO
Carlos Drummond de Andrade